quinta-feira, 19 de março de 2009

Há que ter... amorrr!

Por Nina Horta, hoje, na Folha de SP:

JÁ CONTEI mil vezes sobre a viagem que Carlos Siffert, Olivier Anquier e eu fizemos Brasil afora conversando com as merendeiras. Um dos pontos nevrálgicos que surgiram desde o começo foram quais seriam as condições para fazer uma comida gostosa. Imaginávamos que as merendeiras falariam em cursos, livros e receitas. Responderam meio ressabiadas, mas em uníssono, com sotaque do interior. É o amorrr. E insistiam. Comida sem amorrr não fica boa. Nós tentávamos derrubar a ideia, falando em técnicas, em panelas, em boas condições de trabalho, e elas continuavam, de Jundiaí ao Acre, amorrr. Brincando na internet hoje, encontrei um pequeno vídeo com uma entrevista com Hervé This, com seu inglês de francês, o erre mais puxado que o das merendeiras, mas rascante, num laboratório de cientista louco no Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas em Paris. Passeia por corredores pintados de cores berrantes, afirmando: "É claro que sou louco. Alguém que quer estudar a culinária e mudar alguns processos só pode ser louco. Quem quer entender o que se passa dentro de uma panela quando se faz um cozido só pode ser maluco. Quem se debruça anos sobre um ovo e sua maionese e sua clara batida só pode ter perdido o juízo. E não me importo a mínima com nutrição, dieta, saúde, só me interesso por cozinha, por comida. Estudo os processos da culinária. Mas já percebi outras coisas. Se pego uma xícara de café e dou para alguém, dizendo "Toma", com toda a possibilidade a pessoa vai reagir achando a bebida ruim.Agora, se chego para a pessoa e aviso: "Olha, fui na melhor loja comprar este grão maravilhoso, para fazer o melhor café do mundo para você..." O que acham que acontece? Se comemos um sanduíche ruim com a mulher amada, ele nos parece divino. Se jantamos o melhor jantar com um grupo aborrecido, rá!" Já deu para perceber que o célebre cientista molecular estava falando, amorrr. Dei mais umas voltas na internet e encontrei uma senhora, June Taylor, vestida de branco, uma enfermeira plausível, grisalha, que se dedicou a transformar, em pequena escala, os pomares em compotas, marmeladas, caldas, cascas açucaradas. "A natureza me dá coisas de um jeito que até me desaponto, de tanto luxo. Fico louca. Não faço simplesmente compotas, meu trabalho é o oposto de fazer geleia, é uma extensão da natureza, é um abraço estreito, uma intimidade. Quanto mais compreendo e estudo as frutas, mais amo a minha profissão e melhor ficam os produtos. Me comovo com os primeiros doceiros (compoteiros?), aproveitando a fruta, não deixando que se estragassem no pé." E, enquanto fala, vai escolhendo pêssegos perfeitos. "As frutas são lindas, devem ser mostradas em toda a sua elegância e simplicidade. Penso muito antes de cortá-las para saber como este corte reagirá na boca. Grapefruit me parece melhor em tirinhas finas como fósforos, a laranja deve oferecer alguma resistência em pedaços grandes, e os limões precisam, de quando em quando, estourar na boca. Quero captar a fruta inteira, desvendá-la." Passa a mão pelos vidros transparentes e cola as etiquetas simples, de bom desenho. "Ficam uma delícia com iogurte, aveia, arroz doce, sorvetes. No ano passado, entrei numa viagem de ameixas, explorei todas. Cozinho as frutas, passo por peneira e cozinho de novo, fico com a essência. Fiz caldas combinando o suco da fruta com flores e ervas orgânicas. Lembrei-me do porco que nasceu para morrer com a fruta, misturei lavanda da Provence com champanhe, fiz coquetéis e águas. Despejei sobre o peixe, sobre as carnes leves. Há que ter, há que ter... amorrr." É, não tem mesmo jeito. É o amorrrr!!!!!

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